Tenho lido que a Mangueira, esse ano, "não levantou a Sapucaí como de outras vezes". Pode ser, há controvérsias. O enredo foi o mais ousado da história do carnaval. Tratar da vida de Cristo na passarela do samba não é simples. Houve a reação dos fundamentalistas, que veem na folia um "chamamento ao mal" e consideram incompatível colocar um líder religioso da dimensão de Jesus Cristo no batuque - esquecidos de que o primeiro milagre Dele foi transformar água em vinho, pra festa em Caná continuar. "Milagre da alegria", dizia d. Hélder Câmara. Leandro Vieira foi, como sempre, criativo e corajoso: tratou da história de Jesus rigorosamente de acordo com os relatos bíblicos mas tb o trouxe para os dias atuais, "rosto negro, sangue índio, corpo de mulher". Jesus histórico, Jesus da gente. Jesus humilhado, torturado, reencarnado nos explorados, discriminados e invisibilizados do nosso tempo. Ao desfilar, emocionado, pude reparar a reação da arquibancada: uma parte cantava o lindo samba, e outra, igualmente expressiva, olhava a evolução e ouvia tudo com muita atenção, quase contrita. Afinal, "o samba é uma reza". O desfile tinha luz e euforia, sim, mas também muita dor e cruz - como na vida. "Jesus estará em agonia até o fim dos tempos", ensinou Pascal, no século XVII. Mas o Cristo da fé autêntica, não mercantil, também é pascal, está em permanente ressurreição: "a esperança brilha mais na escuridão", ainda que os poderosos das trevas não queiram. Ainda que nem todos tenham "entendido o recado" redentor. Muitas igrejas cristãs aprisionam o Filho do Deus de Amor em preconceitos, ritos, dogmas, proibições e... negócios, como mostrou a alegoria com Jesus expulsando os vendilhões do templo, tão persistentes. Diria que a Mangueira, esse ano, provocou mais reflexão que "animação", introspecção que extroversão... Foi lindo, inédito, questionador. Tomara que possamos repetir, no sábado: a verdade liberta!
(Chico Alencar, 25/2/2020, "terça gorda")
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