A goleada de 9 a 2 do STF e o perigo do negacionismo de fé
(Pe. Gêge)
Em 08/04/2021, por 9 votos a 2, o STF decide que estados e municípios podem restringir, temporariamente, cultos e missas na pandemia. O debate traz à baila um dos comportamentos mais perigosos em tempo de pandemia: o negacionismo.
A presente reflexão concorda com o pensamento do filósofo e educador Mário Sérgio Cortella, segundo o qual "o negacionismo tem de ser levado a sério''. Por isso, defende o educador, não pode ser tratado "de modo folclórico".
Ideias e práticas negacionistas acompanham a história humana, como sustenta Cortella, mas em tempo de pandemia o fenômeno emerge com alto potencial destrutivo para a coletividade. E ser negacionista não significa, necessariamente, ser ignorante, tolo ou imbecil. Quantas pessoas há no mundo super inteligentes e interessantes, mas que não conseguem lidar com a realidade tal como ela se apresenta?
Quantas pessoas e grupos há, inclusive dentro das igrejas, que preferem matar ou morrer a mudar de opinião em face de uma evidência?
Negacionismo é coisa muito séria!
Ser negacionista, em tempo de pandemia, pode significar ser suicida e também homicida.
Chamo "negacionismo de fé" àquele construído a partir de justificativas religiosas. No que se refere ao cristianismo, consciente e/ou inconscientemente, conteúdos da fé cristã são manipulados, instrumentalizados e, não raro, deturpados para a sustentação obstinada de idéias descoladas das exigências reais e coletivas do contexto avassalador da pandemia da Covid-19. Considero o "negacionismo de fé" o mais perigoso e nocivo, porque manipula conteúdos poderosíssimos do imaginário religioso, pessoal e coletivo. Tais conteúdos são carregados de tonalidade emocional. E pelas verdades religiosas, mais que pelas evidências científicas, se mata e se morre. Religião é, pois, assunto muito delicado e perigoso!
O STF não duelou contra as igrejas cristãs e suas doutrinas e cultos, tampouco contra Cristo (=anticristo), mas contra o negacionismo de alguns cristãos; negacionismo esse travestido de defesa da fé, da doutrina e do culto. O negacionismo (religioso ou não), em tempo de pandemia, é como capim, nasce em qualquer lugar. E, de fato, nasceu também no chão de um cristianismo, fortemente, triunfalista, moralista, farisaico, rubricista e legalista. A meu ver, esses setores do cristianismo contemporâneo (também católico) reverberam, como exibiram (e exibem) na defesa obstinada da abertura dos templos no pico da avassaladora pandemia, o que o Papa Francisco nomeou de "negacionismo suicida". A propósito, desde o início da pandemia, no ano de 2020, tais grupos e pessoas vem erguendo vozes, em nome da fé, alheias ao contexto devastador da pandemia: viva o culto, morra o povo! E nem vou tratar daqueles para os quais “templo é dinheiro”, conforme analise do pastor Zé Barbosa Jr.
Mário Sérgio Cortella, numa live, assim define o negacionismo: "Negacionismo é a recusa à evidências concretas ou a consensos mais ampliados". Nesse caso, segundo o educador, pessoas se prendem às suas convicções, mesmo que suas ideias ou crenças não coincidam com a realidade. Cortella fala ainda que há um negacionismo praticado por pessoas bem intencionadas (inocentes), mas que não conseguem alterar suas posições em face das evidências do real. Há também o "negacionismo por má intenção". Esse tipo, para Cortella, é sustentado por “pessoas que o fazem porque desejam perturbar a compreensão ou querem atender as suas aspirações de natureza política, ideológica e econômica e, portanto, diminuem aquilo que seria a veracidade da realidade para poder atender exclusivamente aquilo que lhes interessa". Esses "mal intencionados" podem assumir um alto grau de perversidade.
Desse modo, bem ou mal intencionado, o negacionista (e qualquer negacionista), é alguém marcado por um corte, brando ou crônico, com a realidade. É pessoa ou grupo, apaixonadamente, preso às suas convicções. Eis porque suspeito ser Narciso o patrono dos negacionistas. O negacionista é um ser apaixonado por suas ideias, por seus pensamentos ou crenças; e delas dificilmente abrem mão, ainda que as mesmas ponham em risco a vida pessoal ou de uma coletividade. Por isso, em tempo de pandemia, o negacionismo pode assumir um viés suicida. O negacionismo é uma forma de cegueira psíquica. Acredito que o fator psíquico atravesse todos os graus e formas (e não são poucas) de negacionismo. Mas também há os negacionistas que o são por pura conveniência ou estratégia de poder. Há negacionismo de fundo moral; uma cegueira de caráter.
Quanto mais o poder é tirano e corroído, mais vai querer impor o que deve ser afirmado e o que deve ser negado.
A propósito, o Brasil foi construído sobre dois pilares de negação: o não reconhecimento da dizimação da população indígena e do genocídio (físico e simbólico) da população negra. Ora, um país que vive satisfeito e feliz com essas absurdas negações é capaz sim de viver, cinicamente, com quaisquer outros negacionismos, inclusive os pandêmicos.
O negacionismo, sobretudo o sustentado por conteúdos religiosos, não é contagioso, como um vírus, mas é contagiante, como um delírio.
O negacionismo, de ordem religiosa ou não, é capaz de produzir uma contaminação psíquica. E, como advertiu a psiquiatra Nise da Silveira, "a contaminação psíquica é pior que piolho. Vai passando de uma cabeça para outra, numa rapidez incrível". O STF, dessa feita, funcionou como um pente fino… Mas falta ainda um sério tratamento. Afinal de contas, uma nova consciência não se constrói apenas por meio de leis, decretos ou proibições.
Futebolisticamente falando, a goleada de 9 a 2 do STF não foi a vitória do "anticristo" sobre os cristãos ou a vitória da sociedade secularizada sobre o mundo espiritual ou ainda a vitória dos "filhos e filhas das trevas" sobre os "filhos e filhas da luz".
Vitorioso foi o Brasil, a humanidade, a ciência, a lucidez, o razoável, o bom senso e a ÉTICA. Sim, a ÉTICA venceu o negacionismo suicida!
Vitoriosa também foi a religião naquilo que traz de mais valioso: a promoção e a defesa da vida!
É importante que se diga que se trata de possíveis fechamentos TEMPORÁRIOS de templos. Repito: TEMPORÁRIOS! E não se está pondo em xeque os cumprimentos dos protocolos pelas igrejas, tampouco o valor do culto ou missa, mas a redução da circulação de pessoas a fim de frear a disseminação do vírus. E penso que as igrejas cristãs, pela marca humanista que carregam, deveriam ser as primeiras a, livremente, fechar suas portas, se assim a situação exigir. No contexto excepcionalíssimo da pandemia do Covid-19, porta fechada pode significar coração aberto.
Por isso, grandiosos foram os 9 ministros e ministras do STF que lembraram aos cristãos que, como ensinou Jesus, "o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado".
No que se refere ao campo católico, foi, no mínimo, vexaminoso para uma igreja que se sabe "perita em humanidade" se fazer representar por pautas tão negacionistas, propósitos tão isentos de compaixão e empatia, interesses tão herméticos e argumentos tão precários, porque fora de lugar. Serviriam para um curso de eclesiologia ou de teologia sacramental ou litúrgica, mas não para a questão em pauta. Vírus, como lembra Mário Cortella, "não tem religião".
Não obstante o Concílio Vaticano II, é mais fácil a pandemia findar em uma semana que a igreja católica superar seu inconsciente tridentino, marcadamente eclesiocêntrico. Como disse Dom Helder Câmara: "Basta de uma igreja que quer ser servida; que exige ser sempre a primeira...”.
Esse tipo de catolicismo rubricista, legalista, sacramentalista, triunfalista e farisaico foi sim goleado (9 a 2); graças a Deus!
São dignas de destaque as palavras oportunas de Mário Cortella: "𝒗𝒊𝒓𝒖𝒔 𝒏𝒂𝒐 𝒇𝒂𝒛 𝒆𝒔𝒄𝒐𝒍𝒉𝒂𝒔, 𝒐 𝒗𝒊𝒓𝒖𝒔 𝒏𝒂𝒐 𝒕𝒆𝒎 𝒊𝒅𝒆𝒐𝒍𝒐𝒈𝒊𝒂, 𝒐 𝒗𝒊𝒓𝒖𝒔 𝒏𝒂𝒐 𝒕𝒆𝒎 𝒓𝒆𝒍𝒊𝒈𝒊𝒂𝒐; 𝒆𝒍𝒆 𝒏𝒂𝒐 𝒕𝒆𝒎 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒊𝒅𝒐, 𝒆𝒍𝒆 𝒏𝒂𝒐 𝒕𝒆𝒎 𝒕𝒊𝒎𝒆 𝒅𝒆 𝒇𝒖𝒕𝒆𝒃𝒐𝒍… 𝑬𝒍𝒆 𝒏𝒂𝒐 𝒇𝒂𝒛 𝒆𝒔𝒄𝒐𝒍𝒉𝒂𝒔. 𝑵𝒐𝒔, 𝒉𝒐𝒎𝒆𝒏𝒔 𝒆 𝒎𝒖𝒍𝒉𝒆𝒓𝒆𝒔, 𝒆 𝒒𝒖𝒆 𝒇𝒂𝒛𝒆𝒎𝒐𝒔 𝒆𝒔𝒄𝒐𝒍𝒉𝒂”. Então, somos nós, seres humanos, independente de religião ou crença, que somos chamados a decidir e escolher, no dramático e trágico aqui e agora da história, o que fazer diante da pandemia em curso. E essa decisão reclama a ética da vida.
Por isso, sob o prisma da ética da vida, gigantes foram os 9 ministros e ministras do STF que não se ajoelharam ante os sacerdotes do deus sanguinário - deus sádico, cujo gozo único consiste em exigir sacrifícios de vidas humanas para satisfazer sua voracidade ritual, cultual e litúrgica!
Pergunta Dom Hélder Câmara:"por que falar sempre de prática religiosa e nunca de prática evangélica, feita de amor e de coragem, e de serviço aos outros?".
Findo, pois, com as palavras do papa Francisco, um homem de Deus perplexo ante a perigosa cegueira humana em tempo de pandemia. 𝑪𝒐𝒏𝒇𝒆𝒔𝒔𝒂 𝒐 𝒑𝒂𝒑𝒂: "𝒉á 𝒖𝒎 𝒏𝒆𝒈𝒂𝒄𝒊𝒐𝒏𝒊𝒔𝒎𝒐 𝒔𝒖𝒊𝒄𝒊𝒅𝒂 𝒒𝒖𝒆 𝒏𝒂𝒐 𝒄𝒐𝒏𝒔𝒊𝒈𝒐 𝒆𝒙𝒑𝒍𝒊𝒄𝒂𝒓".
" 𝑶 𝒏𝒆𝒈𝒂𝒄𝒊𝒐𝒏𝒊𝒔𝒎𝒐, 𝒔𝒐𝒃𝒓𝒆𝒕𝒖𝒅𝒐 é 𝒔𝒖𝒔𝒕𝒆𝒏𝒕𝒂𝒅𝒐 𝒑𝒐𝒓 𝒄𝒐𝒏𝒕𝒆𝒖𝒅𝒐𝒔 𝒓𝒆𝒍𝒊𝒈𝒊𝒐𝒔𝒐𝒔, 𝒏𝒂𝒐 𝒆 𝒄𝒐𝒏𝒕𝒂𝒈𝒊𝒐𝒔𝒐, 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒖𝒎 𝒗𝒊𝒓𝒖𝒔, 𝒎𝒂𝒔 𝒆 𝒄𝒐𝒏𝒕𝒂𝒈𝒊𝒂𝒏𝒕𝒆, 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒖𝒎 𝒅𝒆𝒍𝒊𝒓𝒊𝒐". (Pe. Gegê)
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